Uma substância usada em produtos de limpeza como alvejante, conhecida como MMS (sigla em inglês para “solução mineral milagrosa”), tem sido vendida e indicada, de forma enganosa, como cura do autismo à revelia das autoridades sanitárias, de entidades médicas e de alertas internacionais sobre seus riscos.
Sites como o Mercado Livre, vídeos nas redes sociais e grupos no WhatsApp atrelam o dióxido de cloro a promessas de supostas curas para ludibriar pais que estão desesperados para ajudar seus filhos. Em muitos casos, as mães são apontadas como culpadas pelo transtorno –que não tem cura– como estratégia de venda.
Para ajudar a conter a disseminação de notícias falsas a respeito do autismo e da MMS, um grupo de mães de filhos com autismo se organizou para denunciar vendas irregulares, livros e vídeos com informações falaciosas e também orientar outros pais que já caíram ou ainda podem cair no conto da MMS.
“Comecei uma campanha nas redes sociais porque aumentou muito o número de pessoas que me mandavam mensagens perguntando sobre MMS. Descobri que havia centenas de anúncios no Mercado Livre, sem fiscalização nenhuma, e livros à venda em grandes livrarias do país que orientam o uso de MMS, colocando crianças em risco”, diz a jornalista Andrea Werner, mãe de um menino com autismo.
Segundo ela, alguns dos vendedores indicam a aplicação da MMS nas crianças via retal, já que produto tem o cheiro forte de cloro para ser ingerido. “Mas, como é alvejante, o intestino descama, e os pais são levados a acreditar que os pedaços que se descolam são vermes que causariam o autismo, o que não é verdade. As imagens são de filme de terror.”
Psiquiatra na área de infância e adolescência e médica no Programa do Transtorno do Espectro Autista do Hospital das Clínicas da USP, Rosa Magaly Morais diz que mesmo em doses baixas a MMS pode causar enjoos, vômitos, lesões corrosivas na parede de proteção do intestino delgado e grosso, diarreia, lesão renal, lesão das células sanguíneas que carregam oxigênio e insuficiência respiratória.
Revisões de estudos também apontam outras complicações, como desidratação e choque hemorrágico. A situação fez a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) enviar um ofício de alerta neste mês a todas as vigilâncias sanitárias estaduais sobre a proibição desse tipo de substância. A agência também iniciou uma força-tarefa para tentar retirar esse tipo de produto do mercado. Ao menos 200 anúncios já foram derrubados na internet. Muitos deles, porém, voltam em seguida com outros nomes, o que tem levado a agência a notificar plataformas para impedir previamente as publicações.
“Essas alegações de saúde são o que mais nos alarmam. O produto não tem essa atuação. É uma substância registrada em produtos de limpeza. Não é uma substância que tem estudos para uso em humanos. Esse uso é irregular”, afirma a gerente de fiscalização da agência, Renata Zago. Entre as sanções a quem vende, estão interdição e multa. O caso, porém, também pode ser encaminhado ao Ministério Público para apuração na esfera criminal.
Segundo Werner e outras mães ouvidas pela reportagem, há até casos de médicos que indicam o MMS e pedem que o dióxido de cloro seja feito em farmácias de manipulação.
O CFM (Conselho Federal de Medicina) afirma que o método não tem respaldo científico e que médicos não podem anunciar que fazem uso porque isso pode indicar que a substância é reconhecida pelo conselho. Os médicos podem ser notificados a prestar esclarecimento nos conselhos estaduais, que podem abrir sindicância e avaliar se há infração ética. Denúncias podem ser feitas aos conselhos regionais.
Após ver o filho no hospital pelo uso de MMS, Ana (nome trocado a pedido) hoje usa os mesmos grupos de WhatsApp que venderam a promessa de cura para informar sobre os riscos do produto.
“As pessoas têm que entender que existe um outro lado. Há um risco alto, as crianças podem ficar doentes e podem até morrer. Estou aqui para alertar para que ninguém passe pela mesma coisa que meu filho passou.”
Tudo começou em 2017, quando passou a receber anúncios em grupos de pais de crianças com autismo severo. “Lia tudo o que mandavam, mas não comprava. Até que o rapaz que era o vendedor disse: vou te passar o contato de uma mãe de autista que usou e você vai se sentir mais confiante. Foi aí que tomei coragem e resolvi comprar também.”
Com receio, Ana resolveu testar junto com o filho. As medidas eram diferentes para cada um deles -para o menino, a recomendação era de iniciar com uma gota via oral. A dose aumentaria progressivamente. Se passassem mal, deveriam voltar ao ponto inicial. Também foi indicado o uso de sondas que inserem o MMS no intestino -Ana diz que não conseguiu levar essa parte do tratamento adiante. “Fiz uma vez no meu filho e desisti. É algo horrível, que você percebe que está incomodando”, afirma.
Os problemas começaram logo nos primeiros dias de uso. “Eu tinha dores de cabeça a ponto de querer bater a cabeça na parede. Eu escrevia no grupo que estava mal, mas eles diziam que era normal, e que o MMS estava limpando.” O filho também sentiu os efeitos. “Ele passava mal e começava a vomitar. Teve até erupções na pele. Mas me diziam: ‘não, mãe, isso faz parte’. Tratavam tudo isso como se fosse normal”, afirma.
Segundo ela, o fator que a motivou a continuar foi a sensação de que o filho, que apresenta crises de agressividade, aparentava estar mais calmo.
A descoberta sobre os reais impactos do produto veio três meses depois. “Meu filho começou a chorar, e o choro dele não cessava. Todo mundo me dizia: é só uma crise. Mas eu sabia que era diferente e havia algo errado.”
No hospital, um exame apontou os resultados: o menino já não tinha ferro nenhum no corpo, nutriente essencial para o organismo. A situação abriu espaço para uma infecção grave. “A médica que nos atendeu até questionou: ‘tem certeza que ele começou a passar mal hoje?’ O nível de infecção dele estava muito alto”, relata. Segundo ela, a única coisa que o menino tomava no período era o MMS -suspenso imediatamente.
“Descobri tempo depois que ele parou com a agressividade porque estava com sobrecarga renal. O fígado dele estava tão sobrecarregado que ele não tinha forças para entrar em crise e bater em ninguém. Havia uma falsa sensação de que ele estava calmo, quando na verdade estava doente.” Neste mês, o aumento na oferta e busca por tratamentos sem comprovação levou a SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria) a lançar um manual sobre o tratamento do autismo. “A ideia é tentar alertar e auxiliar famílias sobre isso”, diz Lívio Francisco Chaves, do Departamento de Desenvolvimento e Comportamento da SBP. “Também temos alertado os pediatras para que o MMS seja contraindicado.
Ainda assim, é fácil encontrar vídeos na internet de médicos ‘youtubers’ que citam o MMS e possíveis benefícios. Um dos mais conhecidos é Lair Ribeiro, famoso por polêmicas na internet. Em vídeo do ano passado, ele associa o uso do produto a cura ao responder a pergunta de uma mãe. “Você procura na internet uma coisa chamada MMS. A hora que digitar vai ficar impressionado”, afirma.
Questionado pela Folha, no entanto, Ribeiro mudou o tom e nega indicar o uso da substância. “Não estou dizendo que é para comprar na internet e tomar. A Anvisa tem razão em interferir. E o CRM em interferir, porque está sendo feito errado. Mas existe uma validade no princípio. Tem que ser pesquisado e aprovado. Mas que existe um potencial, existe. Entra na internet e procura que você vai ver”, diz ele.
Indagado se o fato de gravar os vídeos não incentiva o uso do produto e pode expor crianças a risco, Ribeiro contesta. “Se é assim, minha querida, não vou mais falar de nada, porque remédio também faz mal”, afirma ele, que diz ter conhecido a substância em congressos no exterior.
“Vou para a Alemanha todo ano e fico lá dez dias. Lá são apresentadas coisas pioneiras que não têm aprovação ainda. Muitas delas morrem na praia e muitas são aprovadas. E lá dão aula sobre dióxido de cloro. Não tirei da minha cabeça. Fui lá e aprendi. Agora, a pergunta que você me fez: deve usar no Brasil? Não. Não sei quem está fabricando.”
Mas defende a substância. “O mundo todo usa isso para matar vírus e bactéria em água. Como vou dizer que não tem efeito?” Além da Anvisa, no entanto, o MMS também é vetado para uso na saúde por outras agências reguladoras, como o FDA, dos Estados Unidos. Para Chaves, da Sociedade de Pediatria, é preciso atenção a supostos “milagres”, sobretudo em relação ao autismo.
“Muitas pessoas usam do desespero dos pais para aproveitar e colocar esse tipo de tratamento que não tem nenhuma segurança. “É só pensar que está usando um alvejante, que tem potencial para limpeza. Não é nem considerado em nenhum lugar como medicamento. Ele não tem nenhuma indicação ou evidência científica”, diz. Para Rosa Morais, além dos riscos inerentes ao uso do produto, outro problema está em uma possível substituição do tratamento convencional. Ela lembra que a interrupção abrupta de um tratamento pode agravar sintomas e gerar efeitos adversos graves, como convulsões.
“É importante lembrar que o melhor tratamento para o transtorno do espectro autista é a intervenção comportamental, individualizada, intensiva e interdisciplinar”, diz ela, que lembra que ainda não há cura. “Por isso, o diagnóstico gera insegurança e angústia. É compreensível a expectativa por algo que reverta o quadro clínico. Mas não é aceitável o risco envolvido no uso de intervenções milagrosas, pouco conhecidas ou potencialmente letais.”
Fonte: Cidade Verde