Como o petista diante do mensalão, o presidente aposta na acomodação política e em programas sociais, de olho na reeleição. Desorganizada, a oposição repete o mesmo erro de 2005
Um dos maiores erros políticos na história recente do Brasil foi cometido pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso quando veio à tona o mensalão. O PSDB, na época segunda maior força política nacional depois do PT, preferiu “deixar sangrar” o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva a apoiar um processo de impeachment com base nas denúncias de corrupção. FHC acreditava que a derrota de Lula em 2006 seria fácil e bem menos traumática.
O resultado é conhecido: Lula foi reeleito numa votação em que seu adversário, o tucano Geraldo Alckmin, logrou a proeza de obter menos votos no segundo turno que no primeiro. Venceu em virtude de dois fatores. Primeiro, os acenos aos partidos fisiológicos, distribuindo cargos e verbas, lhe garantiram apoio de caciques regionais. Segundo, as políticas sociais, em especial o programa Bolsa-Família, trouxeram para a base petista a população mais pobre, cuja rejeição a Lula antes era alta.
Em seu livro Os sentidos do lulismo, o cientista político André Singer documenta a transformação no apoio a Lula entre as eleições de 2002 e 2006. Na primeira, ele foi eleito graças ao voto da classe média. Na segunda, perdeu parte substancial desse apoio em virtude do mensalão, mas venceu por ter conquistado os pobres conservadores, que sempre rejeitaram a esquerda e costumavam apoiar candidatos que defendessem a ação dura da polícia. Em São Paulo, os malufistas pobres se tornaram petistas.
Justamente esse grupo é hoje cortejado pelo presidente Jair Bolsonaro. Não é difícil entender por que seu governo mantém aprovação de 30%, apesar de toda a tragédia decorrente da pandemia, do escândalo de corrupção envolvendo a família do presidente e milícias cariocas – e de uma recessão que se desenha a maior em décadas.
Assim como Lula, Bolsonaro perdeu apoio na classe média, que se habituou a bater panelas e gritar contra o governo nas janelas. Assim como Lula, cresceu nas classes mais populares, como resultado direto do auxílio-emergencial de R$ 600 que, em diversos casos, aumentou a renda daqueles atingidos pela crise da pandemia. Assim como Lula, fechou um acordo de conveniência com deputados sem nenhuma espinha dorsal ideológica, ligados ao grupo heterogêneo que se convencionou chamar de Centrão. Pôs-se a distribuir cargos e verbas em troca de proteção contra o impeachment.
Há tempo de sobra para Bolsonaro se recuperar até a campanha eleitoral de 2022. O eleitor brasileiro, a história não se cansa de provar, tem memória curta. O presidente será ajudado ainda mais se, como quer a esquerda, o auxílio-emergencial for transformado numa renda básica universal, se tornando uma espécie de “Bolsa-Família de Bolsonaro”.
Se o vírus for controlado – há perspectiva concreta de uma vacina já no primeiro semestre de 2021 – e se a economia começar a se recuperar, o movimento favorável à reeleição de Bolsonaro poderá se tornar irresistível. Naturalmente, se perdurarem os efeitos da crise econômica global ou se seu confrade Donald Trump perder a reeleição nos Estados Unidos, as chances de Bolsonaro serão reduzidas.
A construção de uma terceira via, alternativa a Bolsonaro e ao PT, não passa por enquanto de um amontoado de boas intenções. Enquanto o PT, partido mais organizado e estruturado do país, se mantiver à distância dessa articulação, como deseja Lula, as chances de ela prosperar são virtualmente nulas. E não passa de delírio acreditar que o PT possa endossar um movimento cujo candidato com maior chance é o ex-ministro Sérgio Moro.
A fragmentação do centro poderá levar 2022 a repetir, mais uma vez, o confronto entre Bolsonaro e um candidato petista. É o cenário que interessa a ambos, pois os dois lados têm mais chance de vitória na polarização. Com o PT como adversário, a reeleição de Bolsonaro se torna ainda mais provável.
O governo Bolsonaro nunca esteve tão no fundo do poço, atingido em cheio pela pandemia, pelo Caso Queiroz e por uma crise econômica sem paralelo. Mas o bolsonarismo é o fenômeno político mais relevante a surgir no Brasil desde o petismo. Sua organização é distinta. Soube usar as redes virtuais em vez dos mecanismos tradicionais de organização: sindicatos, igrejas, universidades, ONGs e partidos. Como força política, já demonstrou capacidade. Desprezá-lo, como FHC fez com Lula em 2005, seria um erro ainda mais grave para a democracia brasileira.
Fonte: G1